25 de março de 2007

Da sensibilidade

(Mais um testo da autoria do Francisco "Paradoxo" Bairrão)

Se há pessoa que pode ser considerada insensível sou eu. Não estou a brincar. Ask around. Everyone will tell you. E eu concordo. Não estou a ser irónico. Aliás, é trágico.

O problema está, obviamente, em mim. Eu tenho um problema de personalidade: não tenho personalidade. Não é uma coisa nada agradável, embora, como tudo, tenha as suas vantagens. No entanto, as desvantagens superam-nas claramente. Daí ter decidido iniciar terapia. Após anos de procura e tentativas por outros caminhos - recorri, inclusivamente, à astrologia - resolvi procurar ajuda profissional e científica.

Não ter personalidade torna uma pessoa insensível porquê, poderão perguntar-se os mais distraídos. Bem, a resposta é simples: para o conceito de sensibilidade coloquial, usada no dia-a-dia, ter uma personalidade é fundamental. Não importa se é boa ou má (até porque, como se verá adiante, isso é relativo), o que importa é que se tenha uma personalidade. É que, you see, a personalidade é o centro de imputação da sensibilidade.

Pense-se na expressão banal: "aquele tipo é tão insensível" (muitas vezes usada a meu respeito, by the way). A primeira coisa em que devemos pensar é na questão prévia - na vida tudo depende das questões prévias, não sei se já repararam - e a questão prévia é: o tal tipo insensível é insensível para quem? (o porquê vem logo a seguir e tornar-se-á óbvio).

Basicamente um tipo é insensível quando não conforma o seu comportamento de modo a não magoar os sentimentos de outra pessoa. Daqui decorre uma outra questão prévia interessante e muito importante: se alguém é insensível isso pode derivar de duas causas distintas:

1. Compreendeu os sentimentos da outra pessoa mas por alguma razão não pode conformar o seu comportamento de forma a não a magoar;

2. Não compreendeu os sentimentos da outra pessoa e, logo, não viu qualquer razão para ter de conformar o seu comportamento de forma consentânea.

O que é curioso no uso do termo "insensível" na linguagem quotidiana é que, reparem nisto, ele é usado tanto em 1. como em 2., o que não deixa de ser estranho e terrivelmente problemático.

Em bom rigor, o insensível é apenas o do caso n.º 2. E como eu o invejo. Eu adorava ser insensível no verdadeiro sentido da palavra. Pá, eu dava dinheiro, eu dava um braço. Eu, pensando bem, era capaz de vender a minha mãe só para ser o insensível puro do ponto 2.

O insensível puro é o happy-go-lucky das histórias, é o joane vicentino, é o néscio proverbial. De bem ou de mal com a vida ele não entra em contacto com esse oceano escuro, onde, por vezes, nenhuma luz penetra, que são os sentimentos alheios. A sua sensibilidade não está para aí virada. Ele, na melhor das hipóteses, sente o fragor das árvores, o aroma dos frutos, o cheiro dos animais, algum monóxido de carbono dum Ford Cortina e pouco mais. Não há cá sentimentos alheios e mesmo os seus fluem como se claridades translúcidas se tratassem.

Poder-se-á pensar que este insensível puro é fruto de uma total ausência de personalidade, como aquela que referi a meu propósito no início do texto. Nada de mais errado. Pelo contrário. O insensível puro é alguém com uma personalidade vincada e firme, com todos os contornos bem delineados. E por isso é que, para o bem e para o mal, está lá dentro e os outros estão lá fora e não há confusões de sentimentos e coisas, excepto o ocasional (ou não) sexo.

Felizmente para a paz na terra e a concórdia entre os Homens, perdão, entre o Ser Humano, o insensível puro é uma minoria. A maioria das gentes encarna um tipo intermédio com uma personalidade delineada, com uma sensibilidade mais ou menos receptícia, com a ocasional perturbação, assomo, paixão, revolta, inveja, melancolia, provocadas por eventos exteriores. A lembrar a famosa definição de amor dada por Espinosa, que dizia ser esta uma forma de prazer provocada por uma causa exterior. Bonito, não?

O que fazer, portanto, com o ponto 1.? O que fazer com os casos em que o tipo agiu de forma insensível mas não é, em verdade, insensível? E é aqui que há uma total difusão de opiniões e reacções, conducente ao mais assustador branqueamento dos sentimentos.

Digamos que conseguimos sentir como se sente A. em relação a B; digamos que estamos aqui a falar de sentir no único sentido possível, o da parede azul; isto é, digamos que A. tem toda a liberdade para (se) sentir de certa forma em relação a B. e que, apenas por ter essa liberdade, os seus sentimentos são, necessariamente, verdadeiros.

Agora imaginemos que conseguimos sentir o que B. sente em relação a A. que por sua vez tem muito que ver com a sua relação com C. e D., que também conseguimos compreender; imaginemos, que neste caso, se aplica a mesma fórmula, isto é, apenas por ter a liberdade total de sentir o que quiser em relação a A., os sentimentos de B. são, necessariamente, verdadeiros; imaginemos, por fim, que os sentimentos de A. e B. são contraditórios; isto é, para um mesmo espaço-tempo (vamos imaginar: a cidade de Lisboa, 2006) os comportamentos derivados dos sentimentos de A. e B. em relação a cada um e ao outro são antagónicos.

Sentir e compreender isto tudo a propósito de A. e B. é insensível? Diria que não. Muito pelo contrário, diria até que é de uma empatia hipersensível. Mas, infelizmente, ao fim do dia, isso não resolve nada.

A verdade é que A. e B. continuarão com os seus sentimentos e, pelo facto de serem livres de os sentir e de, por isso mesmo, os considerarmos verdadeiros, devemos considerá-los atendíveis. Isto é, não podemos escapar ao problema tentando tirar da equação A. ou B..

Eles têm os dois sentimentos e merecem os dois ser compreendidos. Claro que X, que somos nós, temos de nos comportar de alguma maneira em relação a A. e a B. porque, neste exemplo, A. e B. não são apenas duas personagens de um filme de onde saímos ao fim de duas horas e fica tudo bem, não, A. e B. neste exemplo, vamos imaginar, são duas pessoas que conhecemos e com quem convivemos continuadamente. O que fazer?

Num certo sentido não interessa, pois a partir do momento em que A. e B. têm sentimentos antagónicos até o não fazer nada, ao fim de um certo tempo, pode ser considerado insensível. Isto apesar de a) X, que somos nós, não ser insensível num sentido puro (como em 2.) e b) compreender as duas posições emocionais em confronto. Basicamente, neste exemplo, o X 'tá lixado. Vai ser insensível quer queira quer não.

O X pode ainda fazer outra coisa. Sempre na linha da parede azul, o X pode resolver o dilema aparentemente inultrapassável tornando-se insensível. E porquê. Porque ser insensível no sentido puro do termo, tal como o temos aqui utilizado, permite determinar um comportamento. Como? X. actuará de acordo com a sua vontade autonomamente determinada. Isto é, não ficará à mercê dos sentimentos alheios (ou dos seus sentimentos vs. sentimentos alheios).

Perguntar-me-ão como é isso possível? E a minha resposta é cautelosa. Não é fácil. Aliás, os casos de insensibilidade coloquial (o tipo do ponto 1. para distinguir do insensível puro do ponto 2.) andam sempre confundidos com casos de hipersensibilidade. São pessoas que não têm uma personalidade definida que lhes permita uma sensibilidade intermédia. Desse modo não têm mecanismos de escolha natural, entre A. e B., por exemplo. Porque essa é que é a verdadeira questão. Nós somos sempre insensíveis para alguém, quer queiramos quer não. Só que na maior parte dos casos - os sensíveis intermédios - temos mecanismos automáticos e quase inconscientes de escolher o lado de A. ou B.. Num certo sentido, preferimos compreender A. ou B. ou, compreendendo os dois, preferimos conformar o nosso comportamento a favor de A. ou B.

O insensível coloquial, de tipo 1. não consegue fazer isso em sociedade, por inter-relação com os outros, nomeadamente com A. ou B.

Para ele a escolha é tão difícil, mesmo em casos aparentemente banais, que ele prefere, por achar mais justo e menos insuportável para si próprio, recorrer a mecanismos de determinação autónoma, não racional. Ou, pura e simplesmente, desistir de decidir. Isto porque a razão, quando confrontado com este problema não oferece solução, identifica um impasse. Perdoa, Espinosa. Estamos perante casos que podem ir desde o autista que desligou o mundo por não suportar os sentimentos que daí recebia, até ao místico que entrega as suas decisões a um Poder Superior. Ou quem sabe, Espinosa, que dizia não haver Bem nem Mal universal e que o Mundo era como tinha de ser e Deus está em toda a parte, em todas as coisas.

O meu ponto é simples: compreender A. e B. neste caso, compreender as pessoas em geral, pode não servir para nada quanto ao comportamento que devemos tomar, quer em relação a elas, quer, mais importante, em relação a nós (caso que deixei propositadamente por tratar).

Claro que nada disto se aplica a mim.

Pode acontecer que o sujeito, leia-se eu, perceba mal os sentimentos de alguém por um erro de palmatória, por achar que a pessoa em causa, A., por exemplo, era parecida consigo. Este erro não tem desculpa porque o sujeito X, leia-se eu, devia saber que, de acordo com o princípio da parede azul, ninguém é como ninguém. E daí que a única coisa certa em termos de comportamentos determinados por sentimentos é nunca nos tomarmos como referência para sentir os outros, mas apenas para nos determinarmos um comportamento. Pelo menos se estivermos a falar de um tipo 1.

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