notivagos
Este texto do Pedro Mexia traz-me agradaveis memorias dos tempos em que vivia na Cidade Nova, infelizmente a situação em Londres tem pouco ou nada que ver com a realidade relatada no texto - e preciso fazer um esforço por ter o casaco nas costas da cadeira do gabinete das 10 da manha as 7 da tarde.
"Existe uma diferença abissal entre a noite e aquilo a que muitas pessoas chamam «a noite». Sobre a noite possuo saber de experiências feito. Em contrapartida, «a noite» é-me quase desconhecida (...).
Começo pela palavra entre aspas, e termino com a palavra sem aspas. «A noite» significa, basicamente, «a noite fora de casa». Ou, de modo mais preciso, a diversão nocturna em bares, pubs, dancings , discotecas e outras casas mais especializadas. (...) Só se vai para «a noite» por causa do álcool, da dança e do sexo. Ora, os dois primeiros não me motivam. E sobre o terceiro, poupo-vos a homilia. Assim, «a noite» não me interessa nem um poucochinho.
Em compensação, a noite é o meu mundo. Distingue-se a noite de «a noite» por se tratar de uma experiência caseira, recatada e eventualmente solitária. Ora eu vivo à noite: é quando se faz escuro que compreendo minimamente a existência, que regresso, uma e outra vez, a tudo o que a faz mais suportável: os discos, os filmes, os livros. Com excepção dos afazeres profissionais e da época de férias, sou um indivíduo razoavelmente filisteu de manhã e de tarde. À noite, porém, chegam, como amigos ao domicílio, Nicholas Ray e Nick Drake, Kundera e Kieslowski, Neil Hannon e Nabokov. Para citar uma escritora francesa, por vezes penso que as minhas noites são mais belas que os vossos dias. Não foi sempre assim. Sou um noctívago há cerca de uma década. Na verdade, descobri a noite no início dos anos noventa, quando tinha de fazer noitadas jurídicas compulsivas. E não quis outra coisa desde aí. As rádios nocturnas, com música de adultério e confissões. Os filmes às três da manhã, com preciosidades que a RTP comprou em saldo. A distensão do corpo. A madeira que estala. As sombras indecisas dos móveis. A inescapável reflexão. A vida nua, crua e porca. E momentos tão admiravelmente tristes como a teleshop, os carros que regressam, a chuva contra o vidro. E o silêncio. Mais escuro que o escuro da noite. E este vício nocturno que é a escrita."
Pedro Mexia, «A noite e 'a noite'», Grande Reportagem, 10.4.2004
[Os cortes não são meus são do terrível Ivan no seu terrível blog - infelizmente não tenho acesso ao texto completo]

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