Politiquices
Sob risco de ser for,cado a admitir que nestes dias ha temas recorrentes neste blog aqui fica um texto do Pacheco Pereira a proposito da morte de Sousa Franco.
Morto pela Morte Inexorável e Morto pela Campanha Evitável
Por José Pacheco Pereira
Público, 10 de Junho de 2004
Anteontem tinha começado a escrever uma nota para o Abrupto sobre a inutilidade e o arcaísmo deste tipo de campanhas eleitorais, que ia colocar hoje em linha. Infelizmente, a pior das confirmações do que lá escrevia deu-se com a morte súbita de Sousa Franco, morto pela Morte, mas certamente auxiliada, na sua tarefa de ceifeira inexorável, pela forma absurda como se continua a fazer campanha em Portugal.
O absurdo destas campanhas eleitorais é total. Exaustivas, cansativas, feitas sem qualquer consideração pelos candidatos que andam, como sonâmbulos, de rua em rua, de asilos de velhinhos para mercados, a ter que entrar nesta loja comercial porque o sr. X é um "apoiante nosso de há muitos anos", ou a tomar um café, o décimo milionésimo, no café do sr. Silva, que é "dos nossos". A julgar pelo espelho das campanhas eleitorais, os grupos sociais e profissionais mais importantes para o voto em Portugal são os velhos dos lares, os doentes dos hospitais, os feirantes, as peixeiras e as donas de casa a fazer compras. O Portugal que se procura é constituído, em primeiro lugar, pelas audiências partidárias, presentes em jantares e comícios, depois pelos "populares" que frequentam sítios onde há muitos "populares", os mercados, as feiras e as ruas centrais das cidades.
Apesar de, há muito, todos suspeitarem que este tipo de campanhas não acrescentam um único voto, e muito menos mudam algum, a verdade é que tudo continua sempre na mesma. Há uma enorme resistência à mudança e convém perceber porquê. O único objectivo destas campanhas é esfregar o ego das estruturas partidárias que querem andar a passear os candidatos, e a mostrar a sua importância. Duvido que se ganhe um voto em tais exercícios e, para além disso, este tipo de campanha não deixa verdadeiro espaço a qualquer outra coisa distinta.
Se as campanhas fossem diferentes, com a ênfase na utilização dos meios de comunicação social, nacionais e locais, e no debate propriamente político das diferenças entre candidaturas, em locais mais próprios do que as feiras, as estruturas partidárias sentir-se-iam minimizadas e como peixe fora de água. A prazo, para manterem um papel, teriam elas próprias que mudar. Mudar o tipo de actividades que conduzem, mudar o perfil dos seus dirigentes. Evoluir de máquinas eleitorais arcaicas, funcionando como "sindicatos" junto do próprio partido e junto do poder autárquico, e nacional, a passar a exercer uma função de pedagogia cívica que é suposto legitimar os partidos para além do exercício do poder. Não só, mas também.
Na última campanha eleitoral que fiz para o PE, vivi dentro de um carro que percorreu cerca de 20.000 quilómetros em 15 dias, num país pequeno como Portugal. Andava de almoço para jantar, almoços e jantares em que havia enorme renitência em que se falasse no princípio e se tinha que esperar horas, em ambientes superaquecidos, e com refeições pesadas à portuguesa. Lá no fim, falava uma longa série de oradores, o presidente da jota local, o presidente da concelhia, o mandatário local, algum convidado especial e o candidato. Às vezes, saía-se a correr para ir a outro jantar fazer a mesma coisa. Nos intervalos, visitavam-se as feiras e os mercados obrigatórios, e uma longa série de visitas a instituições empresariais, a "lobbies" locais, a eventos que coincidem com a campanha e que têm "gente". Foi assim que assisti a um ou dois jogos de futebol e até a uma corrida de cavalos.
O dilema é sempre o mesmo: se não se faz, dizem-nos, é uma desgraça eleitoral, os potenciais visitados ficam zangados e isso é "muito mau para o partido". Na última campanha, recusei-me a visitar asilos, lares da terceira idade e hospitais, mas havia protestos contra essa decisão e sub-repticiamente lá apareciam no programa as "instituições de solidariedade social muito importantes", que depois se percebia serem dirigidas por um notável do PSD. Sendo assim as campanhas, a ninguém espanta o prazer que tive, num dia, em fazer uma pequena viagem de barco artesanal, numa "photo opportunity" é certo, mas que tinha a vantagem de ter o ar do mar e o vento salgado e, apesar de tudo, alguma solidão para pensar.
Estas campanhas são também caras porque são precisas as "ofertas" para distribuir na rua, e a elas se sobrepõe, normalmente a nível nacional, uma dispendiosa campanha de "marketing" e publicidade. Os materiais de campanha são exigidos veementemente porque facilitam um "trade-off" nas feiras e mercados entre candidatos e "populares". Os acompanhantes ficam muito inseguros, se não tiverem nada para dar. Os "populares", por sua vez, também esperam receber alguma coisa: "Não tem aí uma canetinha para o meu neto?"
Os jornalistas gozam com estas campanhas, mas são instrumentais em mantê-las, sendo, como quase sempre são, bastiões do conservadorismo. Se não se ia "para a rua", distribuir canetas e autocolantes, era porque se era elitista, ou se estava mal com o "povo", ou "passava-se mal". Os jornalistas da televisão necessitam, como de pão para a boca, da cor da rua, do eterno beijo, do dichote antipolíticos, do ocasional "vai trabalhar, malandro", do encontro entre candidatos diferentes numa mesma feira (um "must" televisivo que dá sempre), do "soundbite" diário, recolhido à volta de uma qualquer peripécia irrelevante.
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Ninguém sabe quando e porquê a Morte vem, mas que o seu trabalho sinistro foi auxiliado, não me sobram dúvidas. Sousa Franco dedicou-se completamente ao combate político das europeias e fez o que lhe foi pedido pelo partido de forma generosa até ao limite das suas forças. Tinha que estar cansado, muito cansado. Se a sua morte puder contribuir para se pensar de novo as formas de fazer política em Portugal, será mais uma das contribuições cívicas que deu ao país na sua carreira pública.

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