17 de setembro de 2005

leituras cruzadas

[um post do Ivan Nunes a 15 de Setembro 2005 - um suposto email por ele recebido]

Não leve a mal o que lhe vou dizer, mas estive a assistir a um programa de televisão, uma entrevista que a Ana Drago deu ao Pedro Rolo Duarte na Sic-mulher, e foi uma experiência arrepiante, freakish, porque me fez lembrar de si. Para ser sincero, achei que estava a assistir à reincarnação daquele rapaz que apareceu aí há uns dez anos na Política XXI. São ambos muito bem articulados na maneira de falar, com um certo ar de novidade e falam com um contentamento um pouco excessivo. Não é que digam grandes disparates, mas nota-se que as ideias estão um bocado coladas com cuspo. Talvez nem acreditem em tudo o que dizem, a última coisa que leram ou lhes entrou pelo ouvido; mas «funciona bem em televisão», é escorreito, permite agradar aos media. Acho que no geral até são bem-intencionados e, como digo, nem tudo o que lhes ouço é tolice. Quer-me até parecer que às vezes lhes encontro uma certa inclinação para a ironia. [...]
Será que há uma fábrica onde estes jovens são produzidos? Estive a ver com atenção, e o vosso percurso tem semelhanças incríveis. Não é só serem evidentemente os dois de Lisboa, calculo que de meios sociais parecidos: foram ambos para Coimbra fazer teses em sociologia, ambos sob orientação de Boaventura Sousa Santos; ambos cairam sob a sombra política do Francisco Louçã e a orientação mais directa do Miguel Portas (o que é chato, sem ser trágico). E ambos, reparei agora, começaram no mesmo programa de televisão, «Lentes de Contacto», uma coisa para adolescentes e feita por adolescentes no segundo canal do início dos anos 90, embora não ao mesmo tempo, porque creio que você é um bocado mais velho.
Eu tinha uma certa simpatia por si, tanto que cheguei a votar na Política XXI (também, eram umas eleições sem importância nenhuma, não se decidia nada). Mas, de certa maneira, para dizer com franqueza até simpatizo mais consigo por ter desaparecido. Suspeito que deve ter reparado que ser criatura dos media não é vida para ninguém, um boneco articulado a papaguear entretenimento sob a forma de discurso político; e lá foi à sua vida. Para ser uma celebridade, só se for em grande estilo, tipo Scarlett Johansson, Jude Law ou Pimpinha Jardim (desculpe: houve aqui interferência de uma parte do cérebro que devia estar a descansar). Mas você, na política, como celebridade não chega nem para entrar na Quinta; e, para isso, mais vale estar em casa, levar a sua vida, sossegadinho.


[uma post do Ivan Nunes a 27 de Julho de 2003]
"De todos os meus heróis, e tenho vários, nenhum, salvo o meu avô, é maior do que o Calvin.
Lembro-me quando o vi pela primeira vez, num dos números zero do Público, e não achei graça, provavelmente porque nos jornais a que eu estava habituado - o Diário de Notícias, O Independente, o Expresso - não havia comics, e também porque a primeira tira, em que o encontro do Calvin e do Hobbes é relatado, assenta basicamente num nonsense que, sem conhecer ainda os personagens, não é fácil de entender.
Em que reside o génio extraordinário do Calvin como cartoon? Parece-me que é essencialmente no facto de ser a expressão de uma cabeça só que se manifesta na forma de dois personagens. O que superficialmente aparece como "histórias", como descrições de acontecimentos supostamente "reais", é a representação de movimentos internos de uma cabeça, na dupla forma de Calvin e de Hobbes. A existência de Calvin com o seu alter-ego Hobbes permite um grau de loucura ao primeiro que seria paranoica sem o contraponto do segundo. É provavelmente a mistura de megalomania do Calvin com a auto-ironia corporizada no alter-ego Hobbes, acrescentada ainda de um entusiasmo inexcedível pelas coisas e alguns raros momentos de descarada ternura que faz do Calvin um herói tão fantástico. É isso tudo, e ainda a forma, que pode não se ver se não se quiser ver, como o universo adulto e o universo infantil se misturam, como nesta tira, ou nesta, ou nesta.
O Mas a última tira é tão notável, tão brilhante, tão entusiasmante, que, mesmo referindo-se ao fim, é até hoje das minhas preferidas. Como não consigo copiá-la para aqui, não me resta senão fazer o link."


[ainda o Ivan Numes, a 4 de Janeiro de 2004]

Passam este ano dez anos desde que fui cabeça-de-lista da Política XXI ao Parlamento Europeu. Tenho curiosidade de ir ver as cassetes de video das minhas aparições televisivas, com a pele lisinha, a barba bem aparada e um bocado mais de cabelo. No entanto, os sentimentos que essas coisas me despertam são sempre muito contraditórios. Por um lado, tenho simpatia pelo personagem que era eu. Por outro, a televisão, e sobretudo a campanha política, desencadeia uma série de tiques que me desagradam. Uma forma de resumir estes tiques é dizer que a própria expressão corporal das pessoas na televisão é chegada para a frente: muito tensas, como se estivessem muito alerta, muito dispostas a cumprir um papel. Uma parte das coisas que eu dizia era, necessariamente, bluff: um político é suposto ter opiniões sobre todos os temas, e quando não tem prepara-se para inventar, e depois já nem precisa de se preparar porque a invenção lhe sai espontânea. Lembro-me que nas últimas sessões de campanha o discurso já me saía completamente engatilhado - tinha resposta para tudo.
[...]
Quando entrei para o estúdio já estava certamente um bocado irritado. A jornalista, a malograda Dina Aguiar, resolveu fazer perguntas sobre política aos dois crescidos e, quando chegou a mim, disse qualquer coisa do género: «Então? Tão novo?». Aí saltou-me mais ou menos a tampa, tratei-a mal, disse-lhe que a pergunta era estúpida ou coisa parecida e que eu já estava atrasado três anos, estava na plena posse dos meus direitos políticos desde os 18. Na altura tratar mal a Dina Aguiar pareceu-me realmente a melhor coisa que eu podia ter feito, porque discutir política num terço de sete minutos com outros dois candidatos escolhidos ao acaso era coisa que não poderia ter feito.

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